Entre Águas e Descuidos
- Giovanna Reis
- 10 de jun. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 31 de jul. de 2024
A inimaginável Porto Alegre diante da maior enchente de sua história revela racismo ambiental e medidas impopulares, expondo o despreparo das autoridades e as vulnerabilidades de suas comunidades diante a tragédia e além
Marcelo, morador do bairro Menino Deus e vítima das enchentes, indo buscar mantimentos para se alojar no apartamento de seu filho. Após ser resgatado de barco de casa, a rua onde pretendia
se alojar durante a catástrofe começou a inundar.
No dia em que a minha rua inundou, não estava chovendo. O tempo era quente com o sol forte. Meu sogro, cunhado, os seis gatos e o cachorro deles tinham acabado de chegar após serem resgatados, pela primeira vez, de barco do apartamento deles que fica a 6 quadras da minha e já estava alagado desde sexta, 3 de junho. Uma hora após a chegada deles, as ruas se transformaram em rios e os bairros em ilhas. Assim como muitos, não imaginamos que a água poderia chegar onde chegou, da forma que chegou. Do sexto andar, a assistimos brotar pelos bueiros e a rua encher sem parar. Quando planejei a minha mudança para Porto Alegre, nem nos cenários imaginários mais caóticos me vi sendo resgatada de barco de casa. Moro no bairro Menino Deus, a menos de 2 km de distância do Lago Guaíba. Na quarta-feira, 8 de junho, tive de sair da minha residência pelo mesmo caminho de sempre, mas dessa vez com mais da metade do corpo submerso. Debaixo de chuva, acompanhada do meu noivo, sua família e nossos onze bichos, saímos para nos alojar separadamente em moradias de parentes até podermos retornar para as nossas. Faz um mês que divido o apartamento onde moro com o meu cunhado, enquanto o meu sogro ainda está na casa do sogro dele esperando a hora da volta. Fazemos questão de jantar os quatro juntos quase todos os dias e agora todo “oi” e “tchau” viram motivo de abraço. A enchente mudou as nossas relações para sempre.
Considerada uma das maiores tragédias climáticas da história do Brasil, as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul foram causadas por fortes chuvas. Alertadas pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), rapidamente se tornaram uma calamidade pública, afetando 478 municípios, segundo o boletim de informações divulgado em 4 de junho, pela Defesa Civil do estado. Este número representa mais de 95% das cidades gaúchas. A capital está numa posição geográfica vulnerável aos alagamentos. O Guaíba é o ponto final de uma grande região hidrográfica, onde desembocam outros rios como Jacuí, Gravataí e Sinos. Durante chuvas intensas, essas águas vêm em direção à cidade, criando uma ameaça constante. Essa não foi a primeira vez em que Porto Alegre foi tomada pela enchente. A falha no sistema de drenagem urbana fez com que muitos bairros sofressem com as águas vertendo dos bueiros, devido à falta de manutenção e à incapacidade de escoamento, mesmo em áreas que não estão à beira do lago. As consequências foram mais de 2,3 milhões de pessoas afetadas, milhares desalojadas e 176 mortes confirmadas.
Minha família em São Paulo não tinha total conhecimento da situação. Nos primeiros dias do caos na cidade, a minha avó me ligou e disse que tinha visto o que estava acontecendo no jornal. Perguntou em um tom tranquilo: “mas isso é longe daí, né filha?”. Evitei falar da minha angústia pra eles, por entender que a minha situação estava controlada. Eu sabia que não perderia meus pertences ou pior, um familiar, como foi o caso de muitos gaúchos. Antes do resgate, passamos poucos dias sem abastecimento de água e energia elétrica, mas logo percebemos que seria insustentável continuar ali. Não tinham previsão para a água da rua baixar e, nem saberíamos caso divulgassem, porque já não tínhamos mais contato com o mundo “lá fora”. Uma realidade diferente dos cenários que eu imaginei ao me mudar para Porto Alegre. Como uma paulistana, vir para a capital do Rio Grande do Sul representava o desejo de viver com mais tranquilidade. Tudo no bairro é perto. O Menino Deus é uma região com muitos acessos e facilidades. Reconheço esse privilégio e sei que a situação contrasta com outras regiões da capital.

Os resgates na rua Coronel André Belo, no bairro Menino Deus, perduraram dias, levando a vizinhança para lugares seguros. Os dias eram barulhentos, com carros em curto, helicópteros sobrevoando e equipes de socorro chegando com ajuda, enquanto à noite se ouvia apenas o silêncio e se via apenas o nada.
Racismo Ambiental e o Contraste de Realidades
A diferença de tratamento entre bairros ficou evidente durante a enchente. No Menino Deus, o socorro chegou rápido. Resgates, bombeiros e voluntários ajudaram incansavelmente os moradores, a maioria idosos por ali. No entanto, a resposta das autoridades em comunidades como o Humaitá, não foi a mesma. Essa atitude reflete um aspecto preocupante que a jornalista e ativista ambiental, Silvia Marcuzzo, destaca: o racismo ambiental. Este termo refere-se à injusta distribuição dos riscos e benefícios ambientais, em que as comunidades mais vulneráveis são as mais afetadas.
"É justamente isso, a coisa de que as pessoas, as mulheres, os idosos, as crianças, os negros, os quilombolas, os indígenas são os mais ignorados diante desse, os mais afetados e ao mesmo tempo os mais negligenciados. Precisa ter políticas públicas que atuem em áreas de risco", explica Silvia.
A catástrofe, além de destruir casas e desabrigar inúmeras famílias, também revelou a falta de preparo dos responsáveis. Alertas e estudos foram ignorados, a manutenção foi desconsiderada e a resposta emergencial foi ineficiente, como fica evidente na escolha do uso das redes sociais para a divulgação de alertas para pessoas em regiões de risco. Regiões essas que estavam sem energia elétrica há dias e por consequência, sem acesso a internet também.
"As nossas autoridades locais foram muito negligentes e continuam sendo. E o que é pior, não aceitam ajuda de quem pode, porque eles querem ouvir quem que comunguem das mesmas ideias que eles", aponta a jornalista.
Essa resistência em aceitar apoio escancara a ascensão do capitalismo de desastre, termo usado por Naomi Klein em seu livro A Doutrina do Choque. Essa estratégia é comum e sobrevive a base de catástrofes, por meio de medidas antipopulares após um um evento chocante. O prefeito Sebastião Melo anunciou a contratação da consultoria norte-americana Alvarez & Marsal para a recuperação da cidade. A empresa atuou na tragédia de Mariana e Brumadinho e também prestou serviço para a reestruturação de Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005. A desconsideração do trabalho de pesquisadores das universidades públicas e a preferência por uma consultoria americana especializada em crises corporativas combinada às fake news, promovem a descredibilização do poder público. A narrativa sugere que a atuação estatal é burocrática e incapaz, com o objetivo de reforçar a ideia de que a iniciativa privada é mais eficiente e heroica.
A Realidade da Enchente
Fiz uma lista mental de coisas que não queria esquecer quando conseguisse sair de casa. O essencial. Um moletom, meu documento, um livro, minha escova de dente, os remédios do meu gato. Pensei em vestir um calçado fechado para sair pois já tinha visto no jornal que era o mais recomendado para o contato com a água. Às pressas, saímos com os onze bichos e uma pequena mochila cada um, levando o que deu para guardar nos dez minutos que a Brigada, às batidas a minha porta, nos deu para sair. De chinelo, com a roupa do corpo e com a chuva caindo fui resgatada do prédio onde eu moro. Dali para frente, a preocupação passou a ser outra. Esperamos a água descer para começar o trabalho de limpeza na casa da família do meu noivo, que é um apartamento no térreo e rapidamente ficou submerso. Foram duas semanas até a situação começar a se resolver e podermos voltar a andar de carro e não mais de barco. Duas semanas cheio de água com tudo que tem dentro definhando lentamente. No caminho para os dias de faxina, víamos as ruas entulhadas. O “cheiro de enchente” persiste até hoje. Mais duas semanas no processo com um lava-jato e muita água sanitária, esfregando cada cantinho do que ficou. Eles ainda não conseguiram voltar porque precisam trocar o piso contaminado que a limpeza superficial não é suficiente para limpar.
Marcelo, meu sogro, é morador do bairro Menino Deus há 25 anos e perdeu toda a mobília de casa. Ele disse que a pior parte foi ver seus móveis indo embora dentro de um caminhão de lixo, depois de serem estraçalhados por uma escavadeira. Estofados, cadeiras, a estante com a coleção de uma vida de livros que construiu com a esposa. Viver a maior enchente da história do Rio Grande do Sul transformou a minha compreensão do poder do meio-ambiente. Ao passar pelas ruas, ainda é perceptível a consternação da população da minha triste cidade. A tragédia deixou cicatrizes profundas e medos que nos assombrarão durante um longo tempo. Um mês depois e o barulho da chuva à noite ainda me deixa com medo.
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