O Preço da Beleza
- Giovanna Reis
- 10 de jun. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: 31 de jul. de 2024
Desejos, consumo e função social em relação ao universo de moda e beleza na vida de mulheres, e como o mercado pode ser cruel com quem não se encaixa no padrão
Produtos para o cuidado com a pele, perfumes e variados itens de cabelo e maquiagem decoram a penteadeira da Eduarda, de vinte e quatro anos. Ela os considera essenciais para o seu autocuidado, e organiza o uso em pequenos momentos diários. Costuma deixar as atividades mais longas para terças e quintas, dias que não tem aula, para assim caber na rotina corrida de quem tem de conciliar o trabalho com os estudos. Duda explicou que depois de começar a trabalhar de forma autônoma, sua relação com o consumo e bem-estar pessoal mudou, transformando seu olhar para os investimentos em si mesma a partir de uma ótica de merecimento. Assim como vários jovens de sua idade, ela acessa as maiores tendências do mundo de moda e beleza através das redes sociais, onde se atualiza a todo tempo em seu celular. Ainda que a maioria das recomendações de grandes influenciadoras estejam além de seu orçamento, Eduarda faz questão de acompanhar e aplicar as dicas que aprende em sua realidade.
A popularização de termos como selfcare e skincare promove a ideia da realização de tarefas comuns ao cotidiano sob uma perspectiva romântica e idealista. Respectivamente, as hashtags referentes às expressões anteriores têm mais de 11,1 milhões e 20,9 milhões de publicações na plataforma do TikTok. O público desses conteúdos são, em geral, mulheres entre 20 e 30 anos, inspiradas a conquistar o “amor próprio” por meio de hábitos autocentrados, como uma forma de capricho. Normalmente, esses vídeos encorajam práticas de consumismo disfarçadas como cultura de autocuidado. A narrativa de merecimento está profundamente enraizada na cultura do bem-estar e relaxamento. Grande maioria dos tutoriais ensinando como ter um glow up ou se tornar “aquela garota” vem acompanhado de indicações de cosméticos e itens de vestuário, com a promessa de transformar a vida daquelas que os comprarem. Hoje em dia, é uma estratégia comum influenciadoras divulgarem marcas sem fazer menção direta ao produto, apenas demonstrando seu uso em um vídeo de rotina, que são muito famosos na plataforma, tornando a publicidade mais natural e menos perceptível, formato bem aceito pelos usuários. Mas quem patrocina as compras que as publicações patrocinadas estimulam?
O sentimento de conquista atribuído a produtos é compartilhado por vários jovens da região metropolitana de Porto Alegre, que deixam seus desejos para mais tarde. Entre 2012 e 2022, a proporção de domicílios brasileiros classificados nas classes D e E aumentou de 48,7% para 51%, de acordo com um levantamento da consultoria Tendências, divulgado no G1. De acordo com o IBGE, o rendimento domiciliar per capita no Brasil foi de R$1.893 por mês em 2023, R$ 268 a mais do que no ano anterior, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o que qualifica uma alta de 16,5%. No estado do Rio Grande do Sul, em específico, o rendimento mensal foi de R$2.304. Essa estratificação das famílias brasileiras torna nítida a desigualdade econômica no país.
Mulheres da classe trabalhadora vivem em busca de alternativas de consumo para itens de interesse. A Shein é uma varejista internacional online que vende tendências de moda e maquiagem por valores acessíveis. A plataforma acaba atingindo, não somente pessoas com uma renda menor, mas também àquelas que estão fora dos padrões físicos, por exemplo, uma vez que oferece uma grande diversidade de tamanhos, dentro dos estilos que estão em alta. Em lojas de departamento, a maior numeração disponível, geralmente, é 44. Para pessoas maiores, é preciso recorrer a lojas especializadas, que oferecem roupas menos atuais e estilosas, preferencialmente no preto, porque ainda circula a lenda urbana de que a cor emagrece quem veste. Quem está fora do padrão sempre vai sofrer com a falta de representatividade na indústria.
Betânia modela para divulgar as peças que vende nas redes sociais, fotografada pela sócia Katherine.
Por Katherine Gadelha
Com a alta do estilo vintage, outro recurso para encontrar looks diferentes são os brechós. Ainda que a variação de tamanhos seja insuficiente, ele possibilita diversas aquisições para quem sabe garimpar. A Betânia tem vinte e seis anos e sempre teve um olhar atento para a potência das peças de bazar. “Eu acho que eu sempre quis ter um brechó, desde quando eu comecei a consumir. Eu conseguia comprar peças que em loja eu não conseguiria. Comecei a poder experimentar mais. No brechó, as peças são um real, cinquenta centavos. Pode se dar o luxo de comprar coisas que tu não precisa”. Com a intenção de ajudar as amigas com facilidade para a curadoria, junto da sócia, investiu em artigos para vender online, e logo começou a participar de encontros e feiras de desapegos com a própria marca, a Nabi. Betânia recorda com carinho de suas relíquias e como os brechós a ajudaram a desenvolver o próprio estilo:
“Lembro da primeira peça que eu fiquei apaixonada, que era uma saia xadrez. Acho que eu tenho ela até hoje. Se fosse numa loja, eu não iria comprar, porque eu não saberia se xadrez ia combinar com as outras peças que eu tinha".
Atualmente, o Brasil é o quarto maior mercado de beleza e cuidados pessoais do mundo, segundo a Euromonitor International, e a classe C é responsável por 42,6% das despesas nacionais com esses produtos, conforme informações do Pyxis Consumo, ferramenta do Ibope Inteligência. Ainda que as classes socioeconômicas mais baixas consumam rotineiramente o setor de moda e beleza, ele nunca foi pensado para elas. A deficiência de pluralidade em campanhas publicitárias e na variedade de mercadorias é uma barreira que afasta parte do público comprador em potencial. As marcas frequentemente ignoram a diversidade de tipos e tons de pele, cabelo e corpos, criando um nicho que privilegia apenas um padrão específico. Adiante da questão estética e ideológica, os preços altos excluem diretamente mais da metade da população, que não enxerga viabilidade em gastar com o que é dispensável por um valor que vai fazer falta na hora de comprar o essencial.
Diferentes percepções de valor atribuídas aos produtos variam conforme as perspectivas de realidade e contexto social. O rapper Kyan descreve essa diversidade no seguinte trecho:
"Valorizamos o que vestimos e valorizamos o que conquistamos. Onde o tênis de mil vale muito mais que mil reais, pode valer uma vida, pra quem tem ou pra quem quer ter. Onde uma 'Juliet' brilha mais que uma corrente de ouro. Nós agregamos o valor a isso".
Essa narrativa ressalta como, em determinadas comunidades, artigos de consumo podem ganhar valor simbólico que transcende o seu valor monetário. O tênis de mil reais e a icônica "Juliet" (modelo de óculos da marca Oakley) se tornam mais que meras compras: são símbolos de conquista, status e resistência, refletindo a luta diária e a busca por momentos de descontração.
Mito da Beleza
A infinita busca pelo ideal de beleza é reflexo de uma construção social, e que é amplamente discutida por Naomi Wolf em seu livro "O Mito da Beleza — Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres". A jornalista argumenta que os padrões de belo são usados como uma forma de controle social, reforçando estruturas de poder patriarcais, propagando ideais da maternidade, domesticidade, castidade e passividade. Ainda que esses costumes não tenham feito sucesso com as jovens da modernidade, o antigo conceito de que para ser mulher, o pré-requisito é ser bela vive no subconsciente de quem é afetada por essa difusão do padrão irreal desde pequena. Para mulheres de classe média-baixa, essa pressão é ainda mais intensa devido às limitações econômicas que restringem seu acesso a itens considerados supérfluos do universo da moda e cosméticos, uma vez que são esses são os principais pilares para a expressão de identidade. A relação de poder e consumo é evidente na forma como essas indústrias se promovem.
As propagandas regularmente optam pela contratação de modelos que representam um ideal de beleza eurocêntrico, ignorando a diversidade que existe em um país como o Brasil. A repetição dessa figura perpetua a ideia de que um único tipo de ser bonito é aceitável, marginalizando quem não se assemelha a ele. A publicidade pode associar o uso desses produtos à autoestima e sucesso pessoal, criando uma relação direta entre aparência e valor. Se conformar com esses padrões inatingíveis pode resultar em sacrifícios financeiros significativos.
“Tem minha cor?”
As marcas hoje não têm, nem nunca tiveram, como objetivo alcançar a todos os públicos, mas é fácil identificar quem fica de fora dessa zona de interesse. Além de não se enxergarem em campanhas publicitárias, mulheres precisam lidar com o fato de que nenhum dos itens que desejam foi produzido para elas. A ausência de artigos que atendam às suas necessidades específicas, limita as opções de consumo. Essa situação gera um ciclo eterno de frustração e exclusão que impacta constantemente o bem-estar delas. Reconhecido mundialmente, o mercado nacional de beleza investe em fórmulas desenvolvidas para especificidades do povo diverso do Brasil. A Skala é uma marca brasileira de produtos capilares, que está presente em mais de sessenta países ao redor do mundo e é famosa pela performance em fios cacheados e crespos. Diferente das empresas que apresentam uma única linha comercial para esse tipo de cabelo, essa marca tem diversas criações para diferentes etapas do cuidado capilar por um preço acessível, garantindo a democratização do acesso a produtos de qualidade.
Nos anos 2010, depois da quarta grande onda feminista, que despertou ideais de diversidade e inclusão e tornou o debate mais próximo das massas, algumas iniciativas começaram a abordar essas questões. Até hoje, muitos consumidores têm a preocupação de considerar o posicionamento das marcas através da sua comunicação antes de tomar a decisão de compra. A Fenty Beauty é uma marca que revolucionou as barreiras do mundo da maquiagem. Criada pela cantora Rihanna em 2017, é considerada uma das propostas mais relevantes do cenário pela grande variedade de tons para peles pretas. Os produtos são o sonho de consumo de Eduarda. A base, um dos itens mais vendidos pela marca, não sai por menos de R$200.
Recentemente, a marca nacional Boca Rosa, da blogueira Bianca Andrade, se destacou por anunciar cinquenta tons de base em stick. A escolha tem como objetivo atingir um público maior, considerando que, segundo o IBGE, o Brasil tem pelo menos cento e quarenta e quatro tonalidades diferentes de pele.
“Eu tenho preferido empresas e marcas que eu tenho visto que me representam. Eu acredito que a gente tem muita dificuldade, tanto a classe trabalhadora, outras pessoas pretas. Às vezes é difícil se enxergar em algumas campanhas de marketing. Mas eu tenho visto bastante uma mudança. Eu vejo mais como forma de vender para esse público também, não como uma mudança de mente. Mas eu tenho visto mais empresas investindo em outros corpos, em outros tipos de perfis, e não só aquela menina branca, de cabelo liso, magrinha, de olho claro. Então, eu tenho preferência por comprar de marcas que olhem pra mim”, desabafou Duda.
Tássio Santos, maquiador e especialista em pele negra, participou como consultor do desenvolvimento dos tons mais escuros da marca Boca Rosa. Tássio escreveu o livro “Tem minha cor? — Quando se maquiar se torna um ato político”, e é uma referência de resistência negra. Em 2024, Boca Rosa é a primeira marca nacional a apresentar essa gama de cores.
Cartela de cores lançada pela marca Boca Rosa é a maior do mercado de beleza nacional.
Reprodução: Instagram da marca
Ao olharmos para o universo da moda, é possível notar diversas semelhanças ao mundo dos cosméticos. Baseado no mito da beleza e sua ideologia irreal, o mercado de roupas tem se transformado nos últimos anos. É indispensável considerar a democratização dos tamanhos e dos mais variados estilos que a compra online pode proporcionar. Em junho, foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei que ficou conhecido como “PL das Blusinhas” e consiste na taxação de 20% sobre compras internacionais de até US$50. O nome faz referência às compras comuns em sites como Shopee e AliExpress. Em resposta, a Shein chamou a proposta de retrocesso.
“Mesmo diante da decisão, a SHEIN reafirma o seu compromisso com o consumidor e reforça que seguirá dialogando e trabalhando junto ao governo e demais stakeholders para encontrar caminhos que possam viabilizar o acesso da população, principalmente das classes C, D e E – cerca de 88% de nossos consumidores, segundo pesquisa do Ipsos – para que continuem tendo acesso ao mercado global”, disse Felipe Feistler, diretor da varejista no Brasil.
Essa é uma prática que priva a capacidade e possibilidade de expressão de muitas pessoas que não têm acesso a outro meio de aquisição para sua lista de desejos.
Independência sob um teto todo seu
A desconexão entre o ideal de beleza e o poder de consumo sustenta o ciclo de insatisfação e baixa autoestima, onde a sensação de não pertencimento é eterna. No entanto, essa busca por inclusão pode também abrir portas para novas oportunidades socioeconômicas. Muitas mulheres, ao perceberem a falta de identificação e a carência na presença de alguém com quem se assemelha na mídia, encontram no empreendedorismo uma forma de responder a essa demanda não atendida. Betânia é um exemplo claro disso. Ao transformar seu talento para garimpar peças em um negócio próprio, ela não só atende às suas vontades pessoais, mas também cria uma alternativa acessível e participativa para outras com histórias parecidas à sua.
Em "Um Teto Todo Seu", livro publicado em 1929 por Virginia Woolf, a autora manifesta a ideia de independência e liberdade proporcionada pela atividade profissional: "uma mulher precisa de dinheiro e um teto todo seu". O empreendedorismo oferece às mulheres não apenas uma fonte de renda, mas também a autonomia e o poder de definir seus próprios padrões e criar espaços onde se sintam valorizadas. A luta por representatividade não é apenas uma questão de consumo, mas também de dignidade. Miriã é fundadora da comunidade Minas de Propósito e contou que o projeto nasceu “com o objetivo de ser um evento onde mulheres pudessem trocar suas dores e as delícias de viver e elas pudessem encontrar quem elas eram". Hoje, o Minas se dedica a potencializar mulheres gratuitamente, capacitando-as para alcançar seus objetivos.
Apesar de todas as dificuldades rotineiras envolvendo espaço e tempo, Betânia teve parte de seu estoque acometido pelas enchentes no estado do Rio Grande do Sul. A tragédia inundou sua casa no bairro Vila Farrapos, destruindo peças de seu brechó. Fora de casa há quase dois meses, Betânia não desanimou. “A única solução é não parar”, ela confessou e disse que se reorganizou, salvando o que pôde e repensando estratégias de venda. Ela participará de uma feira de desapegos no sábado, 29 de junho, junto de outros empreendedores gaúchos. Sua apurada curadoria de peças continua disponível para compras através das redes sociais do brechó.
O projeto de Costura Solidária foi idealizado pelo centro universitário Ritter dos Reis e traduz a força da comunidade e o poder da colaboração em tempos de crise. Surgiu como uma resposta às necessidades urgentes das vítimas das enchentes e transformou a realidade de muitas pessoas ao proporcionar não apenas roupas, mas também dignidade e autoestima. Foram confeccionadas diversas peças adaptadas às diferentes necessidades, desde roupas infantis até tamanhos extra grandes. Mais do que uma simples solução emergencial, o projeto é símbolo de compaixão. Este exemplo destaca como iniciativas coletivas podem transformar a indústria da moda e beleza, tornando-a mais inclusiva e acessível, independentemente de sua aparência física e econômica.
“Por que a pessoa que é pobre tem que usar só o que é mais miserável, o que é ruim? O pobre não tem que só usar roupa, coisa ruim não, tem que ter acesso a coisa boa também, coisa bonita”, impõe Red, produtora de moda autônoma e voluntária no Costura Solidária.
No final, a verdadeira beleza está no esforço em tentar compreender a diferentes realidades, respeitar suas diferenças e desafiar a todo momento os padrões que tanto segregam e excluem.

Doações de tecidos para confecção de roupas adaptadas às necessidades das vítimas das enchentes
Por Karine Silveira, RED
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